terça-feira, 12 de agosto de 2014

A potência constituinte do povo nas ruas


As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra.
(Nosso Tempo de Carlos Drummond de Andrade)


Costuma-se dizer que a Constituição é obra do Poder. Sim, a Constituição é obra do Poder Constituinte. Mas o que se há de acrescentar, imediatamente, é que o Poder Constituinte pertence ao Povo, e ao Povo somente.
Ao Povo é que compete tomar a decisão política fundamental, que irá determinar os lineamentos da paisagem jurídica em que deseja viver.
(Trecho da “Carta aos Brasileiros” de 1977, escrito por Goffredo Telles Júnior, primeiras manifestações em favor de uma Assembleia Constituinte na década de 70)

Não há que se olvidar da potência constituinte do povo na rua, da possibilidade do poder popular alterar a configuração do poder constituído. Ora, o constitucionalismo contemporâneo é enfático em afirmar: todo poder emana do povo. Dos mais variados textos constitucionais escritos nas mais diversas línguas repetem algumas combinações lexicais que reconhecem a titularidade do poder ao povo: o art. 1º da Constituição da Espanha esclarece que a soberania nacional reside no povo espanhol, o art. 2º da Constituição francesa enfatiza que o princípio da república francesa é o governo do povo, para o povo e pelo povo, o art. 5º da Constituição Venezuelana expressa que a soberania reside intransferivelmente no povo, e o art. 7º da Constituição Boliviana, no mesmo sentido, afirma que a soberania reside no povo boliviano. Assim o faz também a Constituição Brasileira em seu art. 1º, parágrafo único.

Mas não é o texto que permite o povo exercer sua soberania, seu poder, mas sim os fatos, as relações materiais, a política como relação entre os homens e mulheres que produzem sua sobrevivência e, por conseguinte, sua sociabilidade. O poder, que tem origem material nunca ideal, se faz constituído apenas quando perpassa pela legitimidade do poder constituinte do povo, ou seja, emerge das relações reais dos homens e mulheres que vivem a história. 

Mas, uma vez constituído o poder? Onde reside o poder constituinte? Adormece em seu leito, inerte, esperando o beijo apaixonado do poder constituído? Toma cianureto para escapar das adversidades da história? Precisa, para despertar, refletir-se no poder constituído? Corre léguas para fugir daquele que tem sua titularidade, o povo? Acorrenta-se aos pés das oligarquias? Ou abandona as ruas para viver apenas os reinos oníricos das leis, constituições e teses de juristas?

A soberania repousa nos braços do povo e quando ele não se reconhece no poder constituído, quando este se desliga completamente do poder popular, nada mais legítimo que o povo nas ruas faça uso daquela e exerça a sua potência constituinte. Por isso, o poder constituinte, apesar de toda a cantilena em contrário do poder constituído, pulsa, é vivo, não dorme, e nunca deixou ou deixará a realidade das relações humanas, o desconforto da rua que denuncia as contradições e limites do sistema. 

O processo constituinte de 86, por exemplo, como qualquer outro na história das constituições do mundo, nasceu e se legitimou na interpelação dos que estavam fora do sistema e exigiram uma nova conformação e roupagem do poder constituído. Ele nasceu a partir de sua potência constituinte do povo, das manifestações de rua, das movimentações de diversos setores da sociedade brasileira quando estes resolveram que era hora de repensar as estruturas do país. Esse processo constituinte teve início na década de 70 com o travamento de debates acerca da necessidade de mudar o texto constitucional do país, a estrutura que estava em volta do poder. É evidente que nenhum sistema político, nenhuma constituição prevê, na hora de seu nascimento, o momento em que terá seu fim, em que se abrirá para comportar os novos anseios dos homens e das mulheres que fazem sua história. No entanto, por serem históricas, todas as constituições sempre estarão passíveis de mudanças pontuais ou radicais quando aqueles que as legitimam achar pertinente.

Desse modo, são as forças reais existentes na sociedade civil, a correlação de forças dadas na conjuntura, que constituem o poder e que erguem um sistema político e jurídico a partir de suas relações de alteridade na produção da vida humana, dos homens e mulheres fazendo história, é dessas interações que qualquer texto constitucional ou sistema político ganha sua legitimidade.
Nesse momento alguns movimentos sociais identificam no sistema político as maiores barreiras para prosseguir no país um projeto de soberania da América Latina e popular, que rompa definitivamente com o projeto neoliberal que tomou conta na década de noventa de todo o solo e corpos latino-americanos, por isso tem se dedicado na construção de outra correlação de forças que possa fazer ruir as velhas amarras de um sistema político forjado em um regime ditatorial. Por isso de 1 a 7 de setembro haverão urnas em todos os Estados do país, onde tiver povo, para que ele, único portador da soberania, responda se é a favor ou não de uma reforma no sistema político realizada por uma constituinte exclusiva e soberana. Certamente esse processo constituinte não terá seu fim no dia seguinte, esse é apenas o primeiro momento no qual debateremos a necessidade de uma reforma política que não pode de forma alguma se limitar a mudar algumas frases do texto constitucional, deve ser fruto de um processo muito mais denso de mobilização popular. É o início de um processo constituinte que pode levar anos.

Mas por qual motivo a constituinte é um movimento tático? Ora, tivemos com o fim da guerra fria e a derrota da União Soviética uma sensação de fim da história, o avanço do neoliberalismo nas periferias do capitalismo, a derrota militar e ideológica dos movimentos de esquerda perpetuaram uma ideia de que não havia outro caminho a não ser seguir a receita pronta dos países centrais. A década de 90 foi devastadora para as lutas populares e para os setores historicamente excluídos, anos de intensa de negação de direitos e de crescimento da estrutura repressora. No Brasil, vivíamos ainda as consequências da “Transição lenta, gradual e segura do militares” que garantiu que o regime militar se fosse, mas a estrutura social que ele protegia permanecesse intacta, fortalecendo oligarquias locais e a manutenção de um projeto de país não para si, mas para os do centro.

O fim da década de 90 representou também o recuo da política neoliberal pela américa-latina florescendo projeto de nação que garantiam maior autonomia desses países e melhoravam a qualidade de vida do povo. O Brasil seguiu o mesmo rumo e de certa forma joga ainda hoje um papel importante na geopolítica mundial de garantir que seus países vizinhos vivam ensaios de movimentos progressistas sem a interferência dos países do centro. No entanto, a conquista das estruturas governamentais não foi capaz de criar um projeto de sociedade alternativo ao modelo atual, o desafio da esquerda brasileira é exatamente esse, forjar na sociedade um projeto que de fato transforme as estruturas da sociedade brasileira e conquistar hegemonia não só eleitoral, impedindo não só a restauração neoliberal, mas principalmente garantindo o aprofundamento nas mudanças que o povo brasileiro conquistou a duras penas.

Para tanto, precisamos saber aproveitar o momento em que o povo não está mais conformado com os ganhos, mesmo que tacanhos, que a política de conciliação trouxe para o povo brasileiro. A Constituinte é a bandeira que permite encorpar o movimento dos trabalhadores e trabalhadora que pode tornar-se ação hegemônica e avançar na luta de classes brasileira. 

O povo nas ruas derrubou governos, enterrou e implantou modos de produção, desfez textos legais, referendou constituições, constituiu sistemas políticos, econômicos e sociais, e somente ele poderá dizer quando exercerá a sua potência constituinte, com plebiscitos, marchas, ou qualquer outra tática que decidir usar, pois, estando ou não nos mandamentos constitucionais, todo poder emana dele e por ele deve ser exercido.

Magnus Henry da Silva - Levante Popular da Juventude