quarta-feira, 17 de junho de 2015

Um corpo solitário, duas vozes e muita confusão


Noite de sábado. Olho pela Janela. Um corpo jaz, ainda solitário, na rua ao lado. Ouço, já, mas ainda ao longe, barulhos que anunciam uma sirene. Polícia? Ambulância? Estou confusa. "Natal está mesmo muito violenta". É o que dizem os jornais. É o que leio nas mídias sociais. Mas de que violência estamos falando? E quais são as vítimas merecedoras de nossos gritos?
No último sábado, um rapaz caiu de uma moto, já morto, ao lado do prédio onde moro. No mesmo instante, vozes já se levantam nas redes sociais. "Natal está mesmo muito violenta!", ou "até em um bairro que era tão tranquilo, agora há até assassinatos!". Solidariedade é o que não falta com a vítima. Afinal, a nossa cidade tem assistido nos noticiários e sentido nas vivências cotidianas, a inúmeros episódios de violência, seja ela gratuita ou não. Muitas pessoas demonstram sua insatisfação com a falta de segurança na cidade e desgastam suas digitais em intermináveis manifestações virtuais.
O corpo solitário que, até então, não tinha nome, nem cor, nem idade, já recebia vários votos de solidariedade. Sabia-se do rapaz, até o momento, apenas o local de sua execução: um bairro de classe média alta de Natal, onde moravam “cidadãos e cidadãs de bem”, aqueles e aquelas que não merecem morrer. Tinha, o corpo solitário, uma classe, ou lhe tinham determinado uma. Logo, já apareciam na minha timeline toda uma vida inventada: o motivo de estar morto, a idade e até uma família que lamentava sua perda. De repente, o corpo ganhou uma história. Não era apenas mais um corpo; não era mais solitário; tinha as vozes de toda a cidade gritando por ele, se solidarizando com a tragédia da sua morte, clamando por justiça e apelando por uma punição severa ao assassino.
Qual surpresa não foi das minhas amigas, amigos e familiares, descobrir que estavam enganadas. O corpo solitário não era “cidadão de bem”. Ali, naquele bairro que tem seu lugar ao sol, há uma comunidade de, mais ou menos, 15 famílias, as quais só conhecem a sombra que os prédios a sua volta podem dar. E o rapaz morava ali, do lado do morro, mas abaixo dele, naquela pequena área onde os muros dos prédios bonitos, grudados aos muros das feias casas, cercam a liberdade e blindam do Poder Público. Surge uma nova voz, dessa vez, menos macia, mais incisiva, menos compreensiva: o meliante – não mais o menino injustiçado, digno de compaixão - tinha sido executado por um policial, enquanto fugia, numa moto, da tentativa frustrada de roubá-lo. Confusão. Aqueles e aquelas que se lamentavam horas antes por mais uma violência na cidade, se calam, pensam e se voltam a falar. Mas, dessa vez, falam de um corpo. Um corpo solitário, que não tem história, não tinha uma vida e, por isso, nasceu merecendo a morte. As vozes continuam, mas, ao invés de se levantarem contra o possível assassino, chamando-o de delinquente e pedindo a sua prisão, se erguem contra a vítima, acusando aquele que, poucas horas antes, era alvo da empatia de todos.
Pobres vozes confusas; pobres vozes que, ao falarem tanto, não falam nada. Ao falarem de segurança pública a confundem com segurança repressiva policial. Ao defenderem o fim da violência, clamam por mais violência. Julgam quem deve viver e quem deve morrer, usando critérios diferentes para uns e para outros, e falam de justiça. Dizem que vivem com medo, mas, ao mesmo tempo, o disseminam, o alimentam. Confundem circunstância com constância. Acham que se cura a pobreza matando os pobres, e o crime, exterminando os criminosos. É tanta incoerência. Não sou insensível aos amigos e amigas vítimas da violência que ronda por aqui. Também quero paz, quero andar na rua sem medo. Mas, me desculpem, não me peçam para defender a solução, mas também a paliação; a vida, mas também defender a morte; a paz, mas também a guerra. Não me peçam para ser mais uma voz de ódio, quando, na verdade, clamam por uma voz de amor.

Giovana Galvão - Levante Popular da juventude RN

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